A Indústria da Doença e a Saúde em Disputa no Brasil
O Brasil vive uma encruzilhada histórica na saúde. O Sistema Único de Saúde (SUS), construído a partir da mobilização popular e inscrito na Constituição de 1988 como direito universal, tornou-se referência mundial pela vacinação em massa, pela distribuição de medicamentos de alto custo e pelo atendimento emergencial gratuito. Mas, ao mesmo tempo, cresce o poder do complexo médico-industrial/financeiro, formado por laboratórios, hospitais privados, planos de saúde e fundos de investimento que veem a saúde como um setor altamente lucrativo. Cada vez mais, se aumentam os custos com a saúde e pessoas começam a ficar excluídas de um atendimento eficaz, submetidas a ótica da mercantilização de suas vidas.
O país ocupa hoje a posição de sétimo maior mercado
farmacêutico do mundo, segundo dados da Interfarma (2023), com um faturamento
anual que ultrapassa R$ 130 bilhões. Grande parte desse valor vem de
medicamentos de uso contínuo, voltados a doenças crônicas como hipertensão,
diabetes e colesterol alto. Esses fármacos não curam, apenas controlam os
sintomas, transformando milhões de brasileiros em consumidores permanentes.
A cura que não chega: como o Brasil convive com doenças
negligenciadas e o peso do complexo médico-industrial
Por que ainda não vencemos a doença de Chagas, a malária e a
leishmaniose
No interior de Minas Gerais, Dona Maria, 62 anos, convive com
a doença de Chagas desde a juventude. Descobriu a enfermidade tardiamente,
quando os sintomas cardíacos já eram evidentes. O tratamento disponível era o
mesmo que já existia nos anos 1960: benznidazol, um medicamento que provoca
fortes efeitos colaterais e cuja eficácia diminui drasticamente nas fases
crônicas. “O remédio me deixava tão mal que às vezes era pior que a própria
doença”, conta. A história dela não é exceção: estima-se que cerca de 1,2
milhão de brasileiros ainda vivam com a doença, segundo dados do Ministério da
Saúde.
Mais ao norte, na Amazônia, a malária permanece como ameaça
constante. Em 2022, foram registrados 138 mil casos no Brasil, segundo o
Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde, a maioria na região Norte. As
vacinas em desenvolvimento, como a R21, ainda não estão disponíveis em larga
escala, e os esforços locais, como o do CTVacinas da UFMG, esbarram em desafios
de financiamento e infraestrutura.
Já a leishmaniose visceral, transmitida pelo mosquito-palha,
avança silenciosa nas periferias urbanas e em áreas rurais. Segundo dados do
Ministério da Saúde, o Brasil responde por mais de 90% dos casos notificados
nas Américas. Apesar da gravidade, não existe vacina aprovada para uso em
massa; o enfrentamento se limita a diagnósticos precoces e ao controle do
vetor.
O Brasil possui centros de excelência em saúde pública, como
a Fiocruz, universidades federais e grupos de pesquisa espalhados por todo o
país. Essas instituições têm longa tradição no combate às doenças infecciosas.
Porém, como mostram estudos analisados em relatórios do G-FINDER e em
publicações acadêmicas, a maior parte dos recursos destinados às doenças
tropicais negligenciadas (DTNs) vai para pesquisas de diagnóstico, vigilância
epidemiológica e manejo clínico.
Isso não significa que não haja avanços. Mas a ênfase recai
sobre estratégias de controle e mitigação, em vez de soluções definitivas como
vacinas profiláticas ou terapias curativas de amplo alcance. “As indústrias
farmacêuticas ainda não veem incentivos para investir em doenças que atingem
majoritariamente populações pobres. É mais rentável desenvolver medicamentos
para doenças crônicas de uso contínuo”, afirmou em entrevista à Fiocruz
Notícias o infectologista José Angelo Lindoso, pesquisador do Instituto de
Infectologia Emílio Ribas.
De fato, basta observar onde está o dinheiro. Entre 2007 e
2020, o financiamento global para DTNs permaneceu abaixo de 2,5 bilhões de
dólares por ano — quantia que corresponde a menos de 5% do que a indústria
gasta anualmente em pesquisa para medicamentos oncológicos, por exemplo. No
Brasil, editais do CNPq e do Ministério da Saúde chegaram a investir dezenas de
milhões de reais em chamadas específicas para doenças negligenciadas, mas de
forma descontínua. A ausência de um fundo permanente e robusto faz com que
linhas de pesquisa promissoras sejam interrompidas no meio do caminho. Esse
padrão não é casual. Como analisam André Luis Oliveira Mendonça e Kenneth
Rochel Camargo Jr. em artigo publicado na revista Physis, o chamado
complexo médico-industrial-financeiro impõe uma lógica em que a pesquisa
biomédica global se orienta pela rentabilidade. Quanto maior a perspectiva de
retorno financeiro, maior o volume de investimento. Doenças crônicas que exigem
medicação ao longo da vida — como hipertensão, diabetes e depressão — atraem
recursos massivos. Já as doenças tropicais, que afetam populações pobres e
periféricas, recebem migalhas.
Essa lógica também se reflete dentro do Brasil. Um
levantamento da Fiocruz em parceria com a DNDi (Drugs for Neglected Diseases
initiative) mostrou que, embora o país seja líder em publicações científicas
sobre DTNs na América Latina, a intensidade da produção não corresponde à carga
das doenças na população. Ou seja, não se pesquisa na mesma medida em que a
sociedade adoece.
As consequências são dramáticas. Pacientes como Dona Maria
convivem com medicamentos tóxicos e ineficazes; comunidades amazônicas vivem
sob a constante ameaça da malária; famílias pobres perdem crianças e adultos
para a leishmaniose. Ao mesmo tempo, o sistema público de saúde gasta milhões
em tratamentos paliativos e hospitalizações que poderiam ser evitadas com
soluções curativas mais eficazes. Segundo a Organização Mundial da Saúde, cada
dólar investido em pesquisa e controle de doenças negligenciadas retorna
múltiplos em economia de custos hospitalares e aumento de produtividade. Mas,
como afirma a pesquisadora Isabel Kepler, em artigo publicado na revista Revolucionária,
a defesa da saúde não pode ser delegada às empresas e ao mercado: cabe à
sociedade civil e à classe trabalhadora pressionar para que a ciência atenda às
necessidades reais da população.
O Brasil tem capacidade técnica, científica e histórica para
liderar um movimento em direção à cura. Mas isso exige enfrentar interesses
econômicos poderosos. Exige também uma política nacional que garanta
financiamento contínuo, de longo prazo, para pesquisas voltadas às doenças que
mais atingem os pobres. Sem isso, continuaremos a conviver com o paradoxo:
temos ciência de ponta, mas deixamos de buscar soluções definitivas. Pacientes
vivem mais — mas vivem dependentes de medicamentos, tratamentos incompletos e
vacinas parciais. A pergunta, portanto, permanece: até quando a cura será
adiada em nome do lucro?
Nos últimos anos, o setor de planos de saúde passou por forte
concentração. Em 2022, a fusão entre a Hapvida e a NotreDame Intermédica criou
um conglomerado com mais de 15 milhões de beneficiários, movimentando R$ 20
bilhões por ano. O modelo dessas empresas, baseado em rede própria de hospitais
e clínicas, vem sendo questionado por práticas de redução de custos que afetam
diretamente a qualidade do atendimento. Segundo a Agência Nacional de Saúde
Suplementar (ANS), apenas em 2022 foram registradas mais de 140 mil reclamações
contra planos de saúde, grande parte delas relacionadas a negativa de cobertura
de procedimentos. Esses conflitos mostram como, sob a lógica do lucro, o
paciente-cliente é visto menos como sujeito de direitos e mais como risco
financeiro.
Durante a pandemia de Covid-19, o papel estratégico do SUS
ficou evidente: foi o sistema público que garantiu a vacinação em massa de mais
de 180 milhões de brasileiros. A produção nacional de vacinas pela Fiocruz e
pelo Instituto Butantan demonstrou a importância da pesquisa pública. Mas
também ficou exposta a força do complexo médico-industrial/financeiro. A compra
de vacinas da Pfizer envolveu contratos sigilosos e cláusulas de proteção às
empresas, reveladas pelo Senado durante a CPI da Covid. Enquanto isso, os
grandes laboratórios globais faturaram cifras recordes: em 2021, a Pfizer
lucrou mais de US$ 37 bilhões apenas com sua vacina.
Outro campo de tensão está na gestão hospitalar. Mais de 30%
dos hospitais públicos brasileiros já são administrados por Organizações
Sociais (OSs), entidades privadas contratadas pelo Estado. Embora apresentadas
como solução de eficiência, muitas OSs são alvo de denúncias de corrupção,
superfaturamento e precarização do trabalho. Esse processo evidencia um risco:
o SUS, que deveria ser um sistema público universal, acaba transferindo
recursos crescentes para entidades privadas, fragilizando a rede própria e
reduzindo sua autonomia. Apesar do peso do mercado, movimentos sociais,
sindicatos e coletivos de trabalhadores da saúde seguem em luta. O Conselho
Nacional de Saúde (CNS) tem alertado sobre o subfinanciamento crônico do SUS:
em 2023, o gasto público em saúde foi de apenas 3,8% do PIB, enquanto a média
dos países da OCDE é de 6,6%.
No ensaio. Não delegar, o protagonismo da classe
trabalhadora na defesa da saúde e da vida, a pesquisadora Isabel Kepler
ressalta que a classe trabalhadora não pode abrir mão de protagonismo na defesa
da saúde. Para ela, deixar essa agenda apenas nas mãos de gestores ou políticos
significa aceitar que a vida seja subordinada ao mercado.
A disputa em curso no Brasil não é apenas técnica, mas
profundamente política. De um lado, a defesa do SUS como patrimônio coletivo,
baseado na prevenção e na universalidade. De outro, a expansão de um setor
privado altamente lucrativo, que cresce quanto mais prolongadas forem as
doenças e quanto mais dependentes de medicamentos e planos de saúde estiverem
os cidadãos. O desafio que se coloca é claro: fortalecer um modelo de saúde
voltado à cura e à prevenção, ou aceitar a consolidação de uma indústria da doença,
que lucra com a manutenção da enfermidade e com a captura de recursos públicos.
No fim, a questão central é se o Brasil escolherá manter a promessa de 1988 —
saúde como direito de todos e dever do Estado — ou se deixará que o complexo
médico-industrial/financeiro transforme a vida em mercadoria.
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